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Jogo no Estádio dos Aflitos, no longínquo 7 de abril de 1946. Recém-chegado de Garanhuns, no verdor dos seus 19 anos, Ivanildo, que ao longo de sua carreira se tornaria um dos mais carismáticos jogadores que já passaram pelo Náutico, estreava pela equipe alvirrubra. Ivanildo tinha vindo para a capital, graças ao ao bom futebol que jogava na Suíça Pernambucana e tinha por objetivo não unicamente fazer carreira no futebol mas, principalmente, estudar e preparar seu futuro.
Os timbus comemoravam mais um aniversário de fundação enfrentando o Santa Cruz. Espingardinha, assim chamado por causa de sua compleição física - era comprido e magro - atuava de lateral, formando a zaga com Célio Araraquara, de acordo com a formação tática da época - um lateral e um zagueiro. Por ser estreante, logicamente chamava a atenção da torcida, depois de ter tido seu nome badalado pelos jornais recifenses, que não eram poucos naquela época. Saído do mais puro amadorismo e desconhecendo as malícias do futebol profissional, num tempo em que alguns usavam de todos os expedientes a seu alcance para perturbar ou mesmo tirar um adversário de campo, Ivanildo quis partir para a briga, em dado momento, ao ser provocado com um insulto à sua mãe, pelo tricolor Guaberinha, um catimbeiro festejado pelos adeptos de seu time e amaldiçoado pelos torcedores contrários. Era um verdadeiro terror daqueles tempos
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"Fui contido por Gilberto (o volante Gilberto, que exerceu durante muito tempo a função de capitão da equipe e constituía-se num líder dentro de campo) e Célio Araraquara, que no intervalo me deram uma senhora bronca, advertindo-me para ligar, pois o juiz era Sherlock (o inflexível Argemiro Félix de Sena, que não pensava duas vezes para mandar qualquer jogador para o chuveiro) e ele fatalmente me expulsaria", recorda o aposentado Ivanildo Souto da Cunha, que mais tarde teria vários encontros, dentro e fora dos gramados, com Guaberinha, de quem terminou ficando amigo. Não fosse a advertência dos experientes Gilberto e Célio, Ivanildo teria partido para a briga e certamente não obteria o Belfort Duarte, um prêmio dedicado, desde a antiga CBD, antecessora da CBF, aos jogadores que completam 10 anos ou 200 partidas ininterruptas sem uma expulsão de campo.
BACAMARTE PIPOCA-Igual sorte não teve o pacífico Amaury, um craque egresso da cidade de Bezerros, que se consagrou no Santa Cruz, ao qual se ligou até a morte - após encerrar a carreira passou a ocupar o cargo de assistente-técnico. Amaury Santos, como seria conhecido depois, deixou de ganhar o Belfort Duarte justamente por ter reagido a uma agressão de Guaberinha, ao lado de quem tinha jogado no Santa Cruz. Em depoimento a este repórter para o extinto Tablóide Esportivo, edição de Guaberinha, ou Gerson Lins de Miranda, que depois de descalçar as chuteiras foi treinador e árbitro, lembrava suas "proezas". Guaberinha, que fora de campo exercia a função de gráfico no extinto Folha da Manhã, pertencente ao ex-governador Agamenon Magalhães, um simpatizante do Santa Cruz que, por isso empregava vários tricolores, chegou a fazer o zagueiro baiano Bacamarte a pedir dispensa de uma viagem ao Recife. Era o Campeonato Brasileiro de Seleções, e no primeiro jogo entre Pernambuco e Bahia, no velho estádio da Graça, em Salvador, Guaberinha bateu tanto em Bacamarte, seu marcador, que o baiano, sem dúvida antevendo o que poderia lhe acontecer no jogo de volta, tirou o corpo.
Esta foi apenas uma das muitas histórias envolvendo Guaberinha. Seis anos antes, mais precisamente em 1944, disputava-se um Clássico das Multidões, na Ilha do Retiro. O placar ainda não havia sido aberto, mas o Sport ameaçava balançar a rede do Santa Cruz a qualquer momento. O centroavante Arquimedes era uma permanente ameaça para a defesa tricolor. Jogando de centromédio, que corrresponderia mais tarde ao quarto-zagueiro, Guaberinha tinha trabalho dobrado. Pretendia dar um "chega-pra-lá" no atacante e mandá-lo para bem longe da área, porém, concluiu que sendo uma figura manjada não poderia se expor. Pediu a Palito, seu companheiro de zaga para dar um "corretivo" no atacante adversário, mas não foi obedecido. Todavia, Arquimedes não perdeu por esperar. A certa altura, o atacante rubro-negro rolou no gramado, lesionado, quando Guaberinha num gesto capaz de sensibilizar o mais frio dos mortais, dirigiu-se ao adversário para prestar-lhe ajuda.
O problema de Arquimedes era num tornozelo e Guaberinha aproveitou o momento para maldosamente torcer o pé do infeliz que, aos gritos e imprecações, foi obrigado a abandonar a partida numa época em que não era permitido substituir. Assim, com um homem a mais, foi fácil ao Santa derrotar o Sport por 3x1. No episódio envolvendo Amaury, Guaberinha, que há pouco saíra do Santa Cruz, enfrentava o ex-time pela primeira vez, vestindo a camisa do Auto Esporte, desta vez jogando como lateral-direito. O primeiro tempo terminara com o placar mudo. Guaberinha propusera ao seu companheiro Silva, que além de jogar futebol pertencia à Rádio Patrulha, dar um pontapé em Amaury, que estava acabando com o jogo. Mas Silva não topou e Guabera, como era tratado pelos jogadores, ficou aguardando a chance, que veio em certo momento em que Amaury sofreu uma falta e caiu. Ele estava com um esparadrapo na testa por causa de um corte e Guaberinha não teve dúvida em arrancá-lo. O pacato Amaury reagiu dando-lhe um murro. Foi expulso imediatamente, o Santa com um homem a menos não suportou a força do Auto Esporte, que venceu o jogo por 3x1.
ROBERTINHO SOFRE - Num amistoso Santa Cruz x Fluminense, já nos tempos de Ademir, o famoso Queixada, no tricolor carioca, em dado momento, Guaberinha cobrou um pênalti que o goleiro Robertinho defendeu de soco, mas se machucou. Naquela de socorrer, Guaberinha acabou torcendo a mão do inditoso Robertinho, que não pôde continuar jogando. Em 1944, noutro Santa x Sport, atuando de centroavante, Guaberinha jogou areia nos olhos do goleiro rubro-negro Manuelzinho, na cobrança de um escanteio. Em outras ocasiões, agora atuando de zagueiro, interrompia o impulso do argentino Magri, do Sport, também em cobranças de escanteio, com a condenável e odiosa dedada no ânus. Magri ficava furioso e vingava-se chamando-o de "macaquito" Numa excursão do Santa Cruz ao Maranhão, passou oito dias sem poder sair do hotel, em São Luís, depois de armar uma arruaça num jogo com o Sampaio Correa.
"Estávamos ganhando de 3x1, contou, quando o juiz marcou um pênalti inexistente. Revoltado, chutei a bola pra fora do campo, fui expulso e não aceitei a expulsão. O pau cantou, nosso time saiu debaixo de pedradas, foi uma agonia danada. Pedrinho, nosso beque-central ficou desacordado de meia-noite às cinco da manhã por causa de uma pedrada que fez um rombo na sua cabeça. O banzé foi grande mas o pênalti não foi cobrado. Além do Santa Cruz e Auto Esporte, Guaberinha defendeu o Trammways, tendo integrado a seleção pernambucana durante muito tempo. Facilmente adaptável a qualquer posição, jogou nas onze, pois percorreu todas as posturas de um time, do gol à ponta-esquerda, em diferentes épocas de sua agitada carreira.
Um dos episódios mais marcantes de sua vida esportiva foi a participação na trágica excursão do Santa Cruz ao Extremo Norte em 1943, em plena guerra, a famosa "excursão suicida", durante a qual morreram dois jogadores, King e Papeira, vítimas de tersã maligna, uma doença da família da febre amarela. Guaberinha também esteve às portas da morte com a tersã maligna, mas escapou. Ao descalçar as chuteiras em meados dos anos 50 ainda experimentou ser treinador, tendo dirigido as equipes do Auto Esporte e do Íbis, porém desistiu. Também foi juiz e até morrer continuou fascinado pelo futebol, fosse participando do campeonato de Jardim Paulista, fosse torcendo pelo seu Santa Cruz ou participando da charanga tricolor, batendo os pratos.
Por: Lenivaldo Aragão
Gerson Lins de Miranda, o "Guaberinha", depois que pendurou as chuteiras trabalhou como contínuo do Grupo Escolar Dom Vital em Casa Amarela.